quarta-feira, 13 de março de 2024

O SOM DO RUGIDO DA ONÇA - Micheliny Verunschk

O mundo por outras narrativas contadas a partir de "outros mundos"; mundos esses que saem da narrativa de animais como a onça; de ancestrais como o Rio Isa, que a menina Iñe-e compreende a sua voz e as histórias que esse rio carregava em si. 

Me impressionou muito essa perspectiva de mundo por meio de outras mitologias, outros seres não humanos, como o rio: "o rio tomou conta do asfalto com a força da chuva, e uma pessoa morreu afogada na rua. É a força do rio querendo voltar a ser rio". E, a terra: "a terra sempre vomita o que lhe faz mal, também os rios, especialmente aqueles a que se faz engolir a pulso as doenças ou o veneno (...). Uma grande montanha desengoliu o que a afligia, um sangue pastoso, a bile em brasa. Foram meses em meses vomitando aquela baba quente. Tanto que a montanha se apequenou depois daquilo, milhares de bichos, plantas, homens, mulheres e crianças morreram engofadas pela lava, sufocadas pelas cinzas". É como se a natureza devolvesse os maus-tratos na mesma proporção. Não por ser vingativa, mas porque o homem esquece que ele também é natureza. 

Além disso, a obra surpreende ao contar o sequestro de duas crianças indígenas brasileiras, que foram arrancadas de suas raízes para servirem de entretenimento e estudos científicos em Munique, do "outro lado do mundo". Essas crianças indígenas perderam a sua identidade, as suas referências e as suas vidas; e saíram de um país tropical para outro gelado, sendo submetidas a várias formas de violência na tentativa de evangelizar, doutrinar e civilizar essas crianças; como se elas precisassem disso para serem consideradas humanas. Isso me faz pensar em tudo o que está fora do padrão do que é considerado "a norma", ser submetido a violências para se adequar a outro padrão que é o da "norma". Houve uma tentativa de apagamento da memória dessas crianças indígenas, uma violência que advém da colonização.

Vejo um cruzamento entre a realidade e a ficção, que entrelaça fatos históricos, a narrativa da autora e a mitologia dos povos originários de diversas etnias, e a visão deles sobre o ocorrido com o sequestro dessas crianças, que parece estar entrelaçado ao mito da onça contado pela autora com alguns elementos fictícios e outros dentro da visão de mundo de algumas etnias originárias mencionadas pela autora no final da obra. Há também um elo entre a personagem Josefa, que reside em São Paulo e ao percorrer em busca da sua ancestralidade, viaja para Munique e se depara com a imagem de Iñe-e em uma exposição, criando uma sensação de pertencimento, identificação atemporal e ancestral com a menina indígena. "Josefa acaba impulsivamente por comprar uma passagem para Munique. Não sabe exatamente que vestígios segue em uma viagem ao revés do turismo. Segue evidências mínimas, pistas interiores difusas, escuta um chamado que não consegue distinguir de onde vem, mas ainda assim o escuta e segue". Só quem busca a sua ancestralidade sabe qual é esse caminho que a Josefa percorreu ao seguir algo que nem ela sabia o que era, mas sentiu.



Leiam a obra!

Resenha de Thaís Alessandra

                                                                                                                                            


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