quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

BECOS DA MEMÓRIA & QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA

Percepções
 de uma leitora-escritora sobre o "ponto de encontro" dessas duas obras literárias

Por Thaís Alessandra



Embora o contexto da favela narrada por Conceição Evaristo seja provavelmente  da década de oitenta, pois Becos da Memória ficou "engavetado" por vinte anos, tendo a sua 3ª edição publicada em 2006, alguns elementos dessa narrativa, a meu ver remetem ao QUARTO DE DESPEJO de Carolina Maria de Jesus: 
a torneira onde os moradores desciam pra pegar água,  a vendinha onde todos compravam seus alimentos, entre outras coisas; além da miséria, do descaso e abandono das autoridades com os favelados. Além disso, Conceição Evaristo relata as escrevivências de suas memórias, misturadas a ficção. Já Carolina Maria de Jesus, relata personagens e fatos reais do contexto periférico dos anos cinquenta em que vivia, uma época sem assistência social nenhuma, aonde permeava a miséria e a consequente invisibilidade social do pobre. Em ambas as narrativas, há uma favela que não existe mais, pois atualmente como a própria Conceição Evaristo disse "hoje as favelas produzem outras narrativas, outros testemunhos, e inspiram outras ficções. 

A meu ver, é notório a inspiração de Conceição Evaristo na obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, talvez seja a condição de ser mulher preta que as "atravessem" também na escrita. Mas, o fato é que vi certa semelhança nessas duas obras literárias. Em BECOS DA MEMÓRIA, não observei um protagonista na obra, parece que todos têm o seu papel principal, Vó Rita, Maria-Nova, Maria-Velha, Tio Totó, Cidinha Cidoca, Bondade, entre outros personagens, todos assumem o papel principal, mas "nenhuma narrativa é mentira, mas também não é verdade", segundo Conceição Evaristo. Já na obra QUARTO DE DESPEJO, o protagonismo é da autora que faz da sua obra a sua biografia de vida e relata com maestria o contexto do dia a dia da sua favela, descrevendo em detalhes todo o contexto periférico dos anos cinquenta, sem assistência social, completamente miserável e a margem, ao qual vivia a autora, que tinha a fome como a protagonista da sua obra, a meu ver. 

As duas obras narram de forma divergente a cultura nas periferias. Interessante observar o quanto BECOS DA MEMÓRIA traz a noção de pertencimento, identidade e comunidade dos moradores da favela que se sentem ameaçados e sem saber para onde vão mediante a ameaça de desmanche da favela que "expulsam moradores miseráveis para lugares longínquos em que a vida será, certamente, ainda mais difícil" (Conceição Evaristo/Becos da Memória, p. 195). O que me faz pensar que, expulsando eles da favela seria uma forma da sociedade mostrar o quanto eles não podem se aglomerar para construir a sua própria cultura, habitar e ocupar a cidade; e ao mesmo tempo deslocando eles feito animais para lugares onde eles perderão a referência da comunidade e a própria identidade que eles construíram enquanto vivência comunitária com os moradores entre si. 

O fato é que para BECOS DA MEMÓRIA traz um pesar dos moradores com o desmanche da favela, e em QUARTO DE DESPEJO o maior sonho de Carolina Maria de Jesus era sair daquele ambiente que a fazia tanto sofrer. A favela para Carolina Maria de Jesus não era nada romantizada, pois a autora não tinha identificação com os moradores do seu beco, ela parece usar a sua obra como uma espécie de denuncia contra aqueles que perseguiam os seus filhos dentro da sua própria comunidade, além de relatar a sua insatisfação com a fome, com a sujeira, com a miséria, com o descaso político que eles sofriam; há também o relato da autora sobre as crianças terem acesso a todo tipo de coisas que elas não deveriam experimentar nessa fase, como brigas de casal que pareciam relatar violência doméstica, mulheres nuas sendo vistas por eles ao saírem de seus barracos para fugirem das agressões de seus companheiro, entre outros relatos. 

A favela narrada por QUARTO DE DESPEJO também apresenta  cultura, sessões de cinema comunitário, músicas na igreja e outros relatos da cultura local; BECOS DA MEMÓRIA também relata a cultura na favela, mas a autora também menciona a ligação histórica da senzala-favela através do personagem Tio Totó que veio para a favela descendente de pais escravizados. 




Há muitas denuncias implícitas nessas duas obras, que deixa explícito a "herança da escravidão" por meio de um Brasil cruel e escravocrata, que  dá aos favelados condições subalternas de vida ao ocuparem espaços na cidade, saindo de um Brasil colonizado.