SENSAÇÕES A PARTIR DA MINHA LEITURA SOBRE ESSA OBRA
Uma obra atemporal! Fiquei muito atravessada pelo Brasil que reconheci nessa obra, um Brasil colonial e ao mesmo tempo atual, pois muitas coisas se repetem atualmente: o machismo que silencia muitas mulheres e principalmente as negras e as indígenas, a luta por território que atravessa tanto a luta quilombola quanto a causa indígena, o coronelismo que ainda perpetua por comunidades rurais. Teve momentos que me "confundia" como leitora se a obra falava sobre a luta indígena ou negra-quilombola, o que a meu ver não é algo negativo, pois há um marco histórico na construção do Brasil desde a sua base, que é afro-indígena. Não acredito na luta decolonial sem abraçar as duas etnias juntas, o povo preto e indígena precisa se unir para ganhar mais força em sua voz.
Na narrativa também há uma ancestralidade que perpassa pelo rio, que é muito vivo nessa obra, uma crença ancestral, semelhante a crença dos indígenas, que enxerga a vida e a ancestralidade em cada ser que está presente aqui antes de nós humanos. O Rio narrado nessa obra carrega o sangue e o suor do seu povo e acompanha a história do seu povo presente no território Água Negra. Ele tem memória e tem nome, se chama Rio Santo Antônio. Tudo acontece as margens desse rio, a meu ver.
O machismo inerente na história do Brasil também é denunciado nessa obra com maestria, e a obra tem como protagonismo o feminino. Alguns relatos me marcaram nessa narrativa: Belonísia casou com Tobias, e teve que ajeitar a casa para morar, pois ele a tirou da casa dos seus pais e a colocou em uma bagunça, uma casa desorganizada, cheia de entulhos e muita sujeira relatada por ela. Tobias era mais velho, tinha idade para ser o pai dela, e durante anos ela era praticamente "uma criada a seu dispor", a dispor do marido que a agredia verbalmente e diariamente se ela não o obedecesse, não fizesse a comida do jeito dele, ou algo do tipo. Até o sexo era pra dar prazer somente a ele. As agressões sofridas pela personagem eram por coisas bobas. O alívio veio com a morte dele. Assim, ela teve um "respiro", até se permitiu sentir um afeto maior por sua vizinha, a Maria Cabloca, que também era agredida por seu marido, porém fisicamente. O que leva um homem a achar que detém poder-posse sobre uma mulher, ou se sentir melhor que ela, tratando-a como uma escrava ou objeto de satisfação do seu prazer pessoal? Essa também é outra luta desse Brasil relatado pelo autor com maestria, um Brasil patriarcal, sexista, escravocrata e colonial, que ainda perpetua nos dias atuais, independente da classe ou do poder aquisitivo da mulher, mas principalmente perpetua na vida de mulheres negras periféricas e dependentes financeiramente, e também perpetua em comunidades indígenas patriarcais que em algum momento reproduzem a opressão do homem branco. E isso ainda se perpetua nos dias atuais com os altos índices de feminicídios. Foram inquietações que passaram em minha mente ao me conectar com essa história. Por ser mulher e afro-indígena, essa parte da narrativa me tocou muito e em vários trechos, já que várias personagens "padeciam desse mal". Inclusive os desfechos finais dessa obra revelam o porque Donana escondia aquele punhal, ela guardava ele como um segredo, pois além de pegá-lo da Casa Grande pensando em conseguir dar um sustento maior para a sua família, o que não ocorreu; ela chegou a matar o seu companheiro no início da sua jornada, pois o pegou "em cima" de sua filha, ainda menina. Ele convivia com ela como se nada tivesse acontecido, mas havia feito algo que a sociedade "dá licença" para o homem praticar devido a sua estrutura machista e patriarcal. Tudo isso me atravessou bastante enquanto mulher, o que o machismo obrigou as mulheres a fazerem para se defender, transformando-as em assassinas, ou algo do tipo.
Além dos relatos dos abusos do machismo estrutural presente no Brasil narrado por essa obra ficção-realidade, a sensação que eu tenho é que TORTO ARADO também questiona a "posição" do sexo frágil imposta pela sociedade as mulheres, pois a obra também retrata a força da natureza que toda mulher carrega em seu ser, da mulher-onça (Belonísia) que não emitia voz, mas o seu rugido era presente em cada ataque voraz para se autodefender; descendente de Donana, aquela que "pariu no canavial, ergueu a casa e a roça na força do seu próprio punho (trecho retirado da obra referenciada nesse post)". O final dessa narrativa ainda surpreende quando nos faz pensar que essa mesma onça (Belonísia), pode ter sido a responsável pela morte misteriosa de Salomão. Pois ele tentou capturá-la e ela soube se defender. Mas, esse é um mistério!
Ainda no desfecho dessa obra, Belonísia e Bibiana, as irmãs que há muito tempo não se comunicavam, as mesmas que se acidentaram com um punhal no início dessa narrativa, tornando uma irmã como a porta voz da outra, elas se abraçaram como se concedessem uma a outra o perdão, se conectaram como no início da trama e com tamanha força que a leitora sentiu aquele abraço tão bem narrado pelo autor. Elas se conectaram como no início da trama ao cortarem a língua, talvez com a mesma dor cravada por aquele punhal, porém agora cravado no coração de ambas, pela dor emocional da partida do filho-sobrinho.
O punhal também me pareceu outro personagem, que sempre aparecia nas mãos da força-natureza das protagonista desse enredo, para que elas de alguma forma se defendessem do opressor de suas vidas. Foi assim com Donana ao ter que se defender do seu companheiro que violentou a sua filha ainda menina e foi assim com Belonísia que "em um golpe de onça" certeiro se defendeu de uma emboscada.
A espiritualidade e as práticas religiosas de religiões de matriz africana também são presentes nesse enredo, praticas curandeiras que se mantinham vivas através de Zeca Chapéu Grande, até ele virar um encantado e ter suas terras ocupadas por um fazendeiro, o Salomão, Cristão, que fez outras regras naquele território, inclusive havia uma desconfiança de que era o autor da morte de Severo, o genro que continuava a luta por território iniciada por Zeca Chapéu Grande. O que me faz crer que a disputa por território ali presente era a causa daquela morte-armada. É tão viva a ancestralidade nessa obra, que os espíritos dos encantados "ganham voz, corpo e imagem", e auxiliam os vivos, eles têm nome, representatividade e "cavalgam" no corpo do seu cavalo (vivo), e auxiliam eles na "lida do dia a dia".
Fiquei muito impressionada com a formação das imagens que durante a narrativa iam se formando em meu imaginário, ITAMAR VIEIRA JÚNIOR faz isso com primazia. Eu conseguia imaginar o punhal descrito em detalhes, a mala velha de Donana, o pedaço de tecido velho, as cores do carro que socorreu as protagonistas durante o incidente que elas sofreram ao cortarem a língua com aquele punhal. Tudo é narrado em detalhes, com cores, inclusive! O carro tem cor, o rio tem cor, o que faz a gente não desviar o pensamento e imaginar o que está sendo narrado o tempo todo.
RIO DE SANGUE...
Há várias denúncias implícitas nesse enredo, que delatam a "herança de um Brasil escravocrata": a morte de Severo, que é mal investigada pelas autoridades locais e dão por encerrado o inquérito policial com um falso veredito de tráfico de drogas, somente para justificarem aquela morte, manchando a honra e a história da família que ali ficavam a mercê do coronelismo da fazenda Água Negra, terra que carregava o sangue e o suor de muitos pretos que tinham ali o seu sustento em troca de moradia, pois "os donos pisavam os pés nesta terra só para receberem o dinheiro das coisas que plantávamos nas roças" (trecho retirado da obra referenciada nesse post). Diante desse falso inquérito, Bibiana, viúva de Severo teve que lutar para que não manchassem a morte-vida do seu companheiro, pai de seus filhos, pois ela sabia que a justiça não existia na prática. Pois, ao sair da fazenda em busca de "uma vida melhor" para ela e sua família, Bibiana foi moradora de periferia na cidade, e via vários policiais "usarem a mesma desculpa de drogas para entrarem nas casas, matando o o povo preto. Não precisa nem ser julgado nos tribunais, a polícia tem licença para matar e dizer que foi troca de tiro. Nós sabíamos que não era troca de tiros. Que era extermínio" (trecho retirado da obra referenciada nesse post).
A obra também usa um "eu épico e lírico" para delatar as injustiças sociais de um Brasil rural, que tinha posse de suas terras, herança do seu povo que eram livres antes da igreja demarcar "o seu território", tornando os moradores escravos para que usufruíssem das terras que eram deles por direitos. O que a meu ver traz a memória a escravidão indígena que ocorreu no Brasil colonial, a qual a igreja demarcava o território que os indígenas deveriam habitar e os escravizavam. Ou seja, TORTO ARADO traz na literatura a história de um Brasil colonial e os "traços" desse Brasil na contemporaneidade.
Por Thaís Alessandra
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